Era hora da novela. Os muitos, imensamente muitos,da minha família posicionaram-se em pé, olhos fixos no majestoso rádio-capela, postado em cima da cristaleira.
Os agregados iam se aconchegando, parados na soleira azul da porta da sala, tiravam o cs chapéus e cabeça pendida, esperavam o milagre. Burburinho e reverência. Descrença e fé.
Como santo em seu altar, o rádio nos vigiava, ameaçava ou glorificava nossos futuros de amor. Olhos fixos no sonho, devolvíamos aquele olhar com a solenidade de uma prece.
Eu era muito pequena. Ganhava colos, para também fitar nos olhos, os olhos do rádio.
Antes da novela, havia a solenidade da bênção da água na voz grave do mensageiro da Legião da Boa Vontade. Minha avó punha um copo dágua ao pé do rádio, para que o líquido recebesse as preces do alto da cristaleira e depois cada um bebia um gole do líquido bento, então sacratíssimo tira-manchas de pecados veniais escondidos n'alguns corações.
A partir daí era seguir suplício de Ana Bolena prisioneira da torre.
Fazia parte do ritual que antecedia a novela, a irreverência do meu tio avô Vlado que punha junto ao copo d'água um outro, copo de pinga e repetia todas as noites a mesma frase: " Se a água for benzida a cachaça também será e tira o diabo da ressaca do corpo"
Daquela vez não houve a quebra do silêncio nem a ralhação da minha avó.
Meu tio avô bebeu de um só gole, com a delicadeza trazida dos campos da Croácia ,
macheza alcólica e sentimentalismo espalhados entre os índios Machacalis, o mel dos sonhos.
Minha avó virou-se para , por força do hábito, para fortalecer nossas têmperas, ralhar com Tio Vlado. Ele estava sorrindo...Cínico, semi deitado sobre as próprias mãos. Tão vivo! Constaram depois que a morte foi de apoplexia. Mas eu sei que foi pela magia de rir de si e nos atentar para a esperança.
Depois, muitos anos passados, eu soube que era esta nossa sina corrida em sangue cigano em nossas veias e para sempre , dos Balcãs pelas águas venais de Minas Gerais.
Elane T0mich