A cabeça que quiseste... será que a tiveste?
Tu, enamorada apenas de ti; só contigo o teu desvelo...
Não raciocinaste, apenas em ti pensaste,
como se só a ti tivesses que tratar com zelo...
Na história ficas... Ela aponta a tua desdita...
Não se pode tripudiar impunemente...
Além da tua ousadia infinita,
nada mais em ti a registrar sobejamente...
Quiseste uma cabeça na bandeja e... acabado!
Tu, apenas uma fêmea cobiçada...
Vaidosa, um capricho teu realizado...
Quiseste a cabeça... Mas não foste amada...
Porque Amar não é ceifar, não é exigir...
Amar não é determinar, não é ofender...
E aquele que finge amar... sem transigir,
acolhe dor no peito, esta a pior parte do seu ser...
Tiveste uma cabeça na bandeja, e o que mais?
Acaso pensaste que assim calarias a razão?
A tua sanha de vingança, loucura voraz,
não te concede mais do que um mísero perdão...
Pensas que podes tudo, mas podes... nada!
Tua pobreza é imensa, mas tu não o sabes...
Iludes-te, criatura amarga, mulher despojada
de tudo de bom que ao teu ser não trazes...
O que pretendeste, mulher perdida no vazio?
Degolar a voz, cortando uma garganta?
Tão perdida estavas, tua vida... podre fio...
Não vês que muito do que foi dito já imanta?
Pobre Salomé, o que tu tens a nos dar
além da tua vã e tosca insensibilidade?
Acaso pensas que a todos podes imputar
teus tentáculos macabros, tua falta de verdade?
E o homem que levou a ti de João Baptista a cabeça,
que fez manchar o ar do sangue profético e puro...
Pobre vassalo, tão pobre quanto tu ele o é... Obedeça
a ordem tão tresloucada, homem obscuro!
Ah, Salomé, tentas encantar por meios escusos...
O silêncio da noite te trará arrepios
e a tua lida, as tuas atitudes e os teus usos
te levarão a sentir no coração dores e frios...
Foste e és má, nada tens de bom a nos mostrar...
Tua verve doente, perdida, te defende como arma...
Ao te veres vencida, só te restou a lâmina desembainhar...
... para decapitar e podar a voz, ato feio que tu encarnas...
Fica, Salomé, com tuas ensangüentadas lembranças...
Lembra sempre a cabeça da tua vítima na bandeja,
dançando os teus sete véus, o teu corpo em tuas andanças...
Quem sabe te sintas soberana na solidão que tu marejas...
E as palavras... Aquelas que já foram ditas...
... tu não as silenciarás, porque elas já voaram!
E mais e mais virão, de outras gargantas... benditas,
a te lembrarem sempre...
... aquelas que os teus surdos ouvidos já escutaram...
Cartas de alforria
Escritos de Regina Coeli